sábado, 5 de outubro de 2019

Rock "cristão" ou "feito por cristãos"?


A alguns anos atrás a CCM americana (e posteriormente na versão BR, a saudosa CCM Brasil, na edição 09 de janeiro de 2000) saiu uma matéria interessantíssima a respeito de artistas cristãos como Sam Phillips, The Alpha Band, U2, Steve Taylor, King's X, Jars of Clay, The Call e outros que por muitas vezes não seguem as "regras" do "gospel" ou largavam a carreira religiosa, bem como artistas supostamente "não-cristãos" como Joan Osbourne e Prince que por vezes trilhavam os caminhos da música religiosa. Algum tempo antes a mesma CCM (matéria que sairia na edição 08 de dezembro de 1999 da CCM Brasil) falava da dificuldade de rádios "cristãs" passarem músicas, mesmo de artistas declaradamente cristãos, mas que porventura tivessem enveredado pra outras temáticas que não a fé cristã, por exemplo a explosiva "Baby Baby" de Amy Grant ou "Kiss Me" de Sixpence None the Richer. Em 2001 fãs de "rock gospel" ficaram atônitos com supostas declarações da banda Catedral acerca da igreja e do público "gospel" - declarações essa diga-se de passagem já comprovadamente falsas, manipuladas ou inventadas pelo então repórter do site Usina do Som responsável pela desastrosa entrevista -, e muitos abandonaram a banda, já contrariados desde que eles assumiram em 1999 que iriam tocar "para todo mundo" e não só para o público cristão. Curiosamente no mesmo ano um cantor cristão por nome Robinson Monteiro explodia no Programa Raul Gil, à época na Rede Record, com versões de cantores seculares como Whitney Houston e Crowded Horse, lançando um disco de grande sucesso nacional, "Anjo" (música do Roupa Nova que acabou virando o apelido do cantor), com a grande maioria de suas canções de autoria secular. Desde meados dos anos 2000 bandas como Palavrantiga, Aeroilis, Tanlan e Crombie, debaixo de um manto chamado de "Novo Movimento" (ou "Crossover") vem desafiando os limites do que é música e lírica cristã.

Essa discussão sobre os limites do que um cantor cristão pode fazer é tão antigo que muitos creem vir de bem antes do cristianismo. Como falei no texto que também dá pra encontrar aqui no Blog acerca da linha do tempo da história da música cristã, acredita-se que o Rei Davi chegou a usar canções da época como base instrumental para alguns de seus salmos. Salomão fez uma canção de amor para uma de suas esposas fantástica que todos conhecemos como Cantares (ou Cântico dos Cânticos) de Salomão e que está presente tanto na bíblia hebraica (só o antigo testamento) como nas de qualquer vertente do cristianismo. Martinho Lutero, o reformador da igreja, usou canções usadas em campos de cevada para criar cânticos que levaram diversas pessoas a se arrependerem verdadeiramente ao Evangelho, para desespero de muitos de seus opositores que diziam que "as canções de Lutero 'destruíram' (crivo meu) mais corações que suas pregações e livros". O "Saltério de Genebra", primeiro hinário oficial da igreja calvinista, foi encomendado pelo Jean Calvino em pessoa para Louis Bourgeois, que pediu ajuda a Clement Marot, poeta francês que usou canções francesas populares para fazer a métrica dos cânticos, muitas dessas para entretenimento do rei francês Francisco I, uma situação que levou Marot a fugir dos católicos franceses furiosos e se abrigar em Genebra pra não ser morto (!). Séculos mais tarde os irmãos Wesley (John e Charles), fundadores do metodismo, criaram as canções evangelísticas, feitas com o intuito direto de trazer pessoas a Cristo, mas usando canções populares e folclóricas de origem germânicas, como a famosa "O Dia de Descanso e Júbilo", que originalmente chamava-se Mendebras e é cantarolada até hoje por qualquer um que trabalhe nos campos de cevada alemães. William Booth, criador do Exército da Salvação, foi o maior criador dos hinos de marcha, usando marchas populares de exércitos e hinos como o "Battle Hymn of Republic" para fins evangelísticos (esse último no Brasil é conhecido como "Vencendo Vem Jesus" ou "Glória Glória Aleluia"). Na primeira metade do século XX o famoso evangelista Billy Sunday usou de expedientes similares aos de D.L. Moody e outros já citados, e vários cantores como Joshua White, Blind Willie Johnson, Rosetta Tharpe, Mahalia Jackson e Gary Davis fizeram carreiras paralelas cristãs e seculares, encontrando pouca ou nenhuma oposição em alguns momentos dentro da igreja, algo bem diferente do ocorrido com os primeiros roqueiros, como Elvis Presley, Chuck Berry, Sly Stone, Carl Perkins, Jerry Lee Lewis, B.B. King e Johnny Cash, que enfrentaram severa repressão por parte do mundo cristão. No final dos anos 1960 o Jesus Movement tentou levar ao público jovem de seu tempo uma música mais contemporânea, o que levou à fúria de muitas igrejas conservadoras. Aqui no Brasil a oposição ao "rock cristão" (quem nunca ouviu Lourival Freitas tocando seu country - olha que ironia - "Tem Roqueiro na Igreja" dizendo que "se você não for bem crente dar vontade de dançar", que "seus barulhos não têm nada de Evangelho" e que os pastores deixam tocar na igreja com medo de "logo se desviarem e virarem vagabundos") já provinha desde os precursores dos anos 1970, piorou quando o Janires e o Rebanhão com suas letras geniais e sonoridade bem variada levou eles a acusações de conter "mensagens subliminares" em seu disco de estreia "Mais Doce que o Mel" de 1981, entre outros; e piorou ainda mais com o "movimento gospel" do final dos anos 1980 até o final dos anos 1990. Bem, esse último até quebrou no fim de sua jornada como movimento muitos preconceitos acerca do rock, porém acabou gerando um efeito colateral bem curioso: a rejeição a toda música "secular".

A aversão à "música do mundo" obviamente precede o movimento gospel, e já era famosa a muito uma frase: "queria que meu vizinho virasse crente pra me dar todos os discos dele!", já que não era incomum esse ato (minha mãe mesmo fez isso - e se arrepende amargamente faz tempo haha). Porém o gospel sem querer acabou criando uma barreira de separação: agora existe a música "gospel", cristã, boa, adequada (apesar de muitas terem heresias terríveis) e a música "secular", "mundana", corrupta, feita por "servos do diabo" e que não trazem nada de bom, cantar essas músicas feitas por eles, mesmo as que supostamente falam bem de Deus ou ouvir versões que eles porventura façam de canções cristãs vai enfiar na sua cabeça e na sua vida demônios e etc e tal. Colocaram que se o movimento gospel trouxe a abertura para outros ritmos, agora tornava-se desnecessário completamente ouvir, comprar, assistir ou ter quaisquer coisas "seculares", sob pena de estar sustentando "adoradores do demônio". Alguns pastores chegam até a afirmar aquela velha teoria que muitos teólogos mais atenciosos já descartam completamente de que satã quando ainda era um querubim era regente dos corais celestes e que levou todos os instrumentos e ritmos com ele pro inferno (esse é "o bichão" mesmo hein cara! Roubou o que é de Deus na cara dura). Com isso, artistas cristãos que fazem covers de bandas seculares ou que decidem se aventurar numa carreira mais "mainstream" ou similar são chamados de traidores, vendidos, mundanos ou falsos cristãos. A situação é tão ridícula que já vi cantores e bandas como Novo Som e João Alexandre serem xingados por cantar canções românticas. Esse último chegou a declarar que não fazia "música gospel", o que causou certo celeuma no cenário. Algo parecido pode ser dito sobre o termo "white metal" (inventado pela gravadora Metal Blade unicamente pra banda Trouble - formada por cristãos, mas nunca declaradamente "gospel" e que odiava o rótulo "white metal" - pra separar de bandas que cantavam sobre o demo, as "black metal" antes do termo designar um estilo), termo inventado por uma gravadora não cristã e que acabou por rotular, segregar e virar chacota no meio "secular" - principalmente no Brasil, onde o nível de intolerância chega a estados alarmantes, em especial quando enfiam ideologia no meio da parada (o termo "unBlack metal" acabou caindo na mesma situação inclusive). Rebelando-se contra esse termo, Claudio Tiberius e cia, fundadores do C.M.F. (Christian Metal Force) e da DevilCrusher, acabaram encerrando a banda e criando a Berith, uma das mais polêmicas bandas cristãs brasileiras por justamente em meio aos anos 1990 se recusar a se identificar como "white metal" e tocar em todos lugares e com as mais diversas bandas, chegando a tornar-se amigos íntimos da banda secular Torture Squad.

Nesse retrospecto todo, fica ainda aquela situação, em que muitos contestam bandas como Stryper e Ultimatum, que não têm nenhum problema em fazer covers de bandas seculares - chegando a deixar claro, como no caso da Stryper, que não são uma banda "cristã" e sim feita por cristãos. Contestam bandas como Midnight Oil, Rodox, Moby, Aunt Beans, Alice Cooper, Bruce Cockburn, Tonio K., P.O.D., As I Lay Dying, Pat Boone, Mark Heard, Megadeth, Bob Dylan, Catedral e U2, formadas por cristãos, mas que não se comprometem diretamente com a música cristã. Contestam cristãos como Nicko McBrain (Iron Maiden), Tom Araya (Slayer), Cleberson Horsth e Serginho Herval (Roupa Nova) e o saudoso Serginho Knust (Yahoo) por tocarem em bandas seculares. Contestam bandas como Palavrantiga, Circle of Dust, Argyle Park, Pimentas do Reino, Crombie, Marcela Taís, Resgate e Lorena Chaves por letras "pouco claras" acerca da sua fé. Exigem um padrão de lírica sempre "gospel", querem que se fale o tempo todo de "Jesus Cristo te ama, te salva" ou "Glória a Deus" o tempo inteiro. A questão é que mesmo a Bíblia - que tem como centro e âmago Jesus Cristo, indubitavelmente - não se basta nos temas relacionados à louvor e adoração a Deus ou proclamação do Evangelho da Salvação. Até mesmo dentro da Palavra de Deus é possível ver cânticos com temáticas e motivos variados, que no fim todos são pra glória de Deus. O exemplo do livro de Cantares é bem importante pra mostrar que é possível cantar sobre as belezas da criação e do amor entre um homem e uma mulher pra adorar a Deus, mas além disso, há outros exemplos, como todo o livro de Lamentações de Jeremias, cânticos feitos como lamento pelo estado de Jerusalém antes e depois de sua queda pelas mãos da Babilônia, mas não se restringe a este: o salmo 88 de Hemã é sem dúvidas o salmo mais "gótico" da Bíblia, terminando de maneira bem críptica e dura. Jeremias mesmo fez lamentação sobre o rei Josias por ocasião de sua morte (2 Crônicas 35.25). O salmo 73 é mais um hino de denúncia das injustiças sociais do que um simples louvor a Deus. Em Josué 6 foi mandado o povo tocar trombetas não em louvor a Deus, mas como um clamor de guerra, e o mesmo pode ser visto em Juízes 7.8, 16-22 e em 2 Crônicas 20.21-22. Cânticos na Bíblia aparecem para os mais diversos motivos, mas na história da música cristã também foi assim, como por exemplo "Quão Grande És Tu", de Stuart Hine, que nasceu enquanto ele andava por um bosque e via a grandiosidade da criação divina. Sim, cantar sobre as belezas criadas por Deus é uma forma de louvar ao Criador. Então é algo bem complicado persistir em xingar pessoas cristãs que escutam secular ou que cantam letras "pouco religiosas". Primeiro porque não se pode julgar temerariamente pra não sermos julgados, pois a medida que julgamos indevidamente voltará contra nós (Mateus 7.1-2), quem somos nós pra definir se as pessoas são ou não de Deus baseados em aparências e regrinhas tolas da nossa "cultura cristã" (termo ridículo inclusive, já que o cristianismo não é uma cultura e sim uma fé transcultural que pode muito bem se manter dentro de qualquer cultura, obviamente removendo aquilo dentro da cultura que desagrada a Deus). Além disso, a Bíblia não estabelece regras realmente sobre o serviço ou o louvor a Deus, exceto uma: deve ser "em Espírito verdadeiro" (João 4.23-24). Como diria Lutero a um sapateiro que lhe perguntou como faria pra servir bem a Deus: "faça um bom sapato e venda-o por um preço justo". Todas nossas atividades devem ser pra glória de Deus, devem ser atos de louvor e adoração a Deus, e isso não só em cânticos "gospel". Será que estamos tentando fazer o papel de juízes na Terra de maneira indevida? Pois é, pensemos nisso.

Deixo pra finalizar o cântico "Falso Véu" de João Alexandre que ele fez pro Vencedores por Cristo que representa muito essa piração toda por parte de alguns hipócritas que precisam ser mais adeptos do "misericórdia quero e não sacrifícios" (Oséias 6.6 e Mateus 9.13).

Quem é que pode te garantir
Que este teu jeito
De servir a Deus
Seja o melhor
Seja o mais leal
Um padrão acima do normal?

De onde vem tanta presunção
De ser mais santo
De ser capaz
De agradar a Deus
Crente nota dez
Superior acima dos fiéis

Pobre este entendimento
Que não vem de céu
Fraco discernimento
Frágil, falso véu
Tenta encobrir em vão
Teu lado animal
Luta, perseguição
Tanto desejo mau
Confusão
Divisão

Se alguém quer mesmo
Agradar a Deus
Saber das coisas
Compreender
Mostre em mansidão
De seu caminhar
Ser gentil no gesto e no olhar
E a diferença que existe em nós
Poeira vinda do mesmo chão
É somente o amor
Que nos alcançou
Graça imensa
Imenso perdão
É somente o amor
Que nos alcançou
Graça imensa
Imenso favor


Que Deus nos abençoe e esse texto foi mais uma reflexão e não um "faça exatamente igual a mim". Ninguém é obrigado a seguir o que seu irmão segue, mas deve-se haver respeito, não o ataque às diferenças tão singelas. Sei que existem casos reais de cristãos que vendem seu chamado pro pecado, mas muitos desses curiosamente persistem a estar no mercado "gospel". Curioso não? Pensemos e oremos uns pelos outros e deixemos o dedo pra "furar bolo" invés de apontar!

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